1Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso. 2Louvado seja Allah, Senhor do Universo, 3Clemente, o Misericordioso (…). (Corão, Surata 1).
1Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são os louvores, a glória e a honra e toda benção. (Francisco de Assis, Cântico do Irmão Sol, 1).
Do turbulento século XX com suas grandes guerras e as mudanças culturais, sociais, econômicas e religiosas, adentramos o século XXI com a urgente necessidade do diálogo em vista do bem comum e da paz mundial. Um dos campos em que essa necessidade se faz mais urgente é o religioso, por meio de um verdadeiro empenho em direção ao diálogo inter-religioso, à busca pela paz e não violência.
A religião não “desapareceu” com o advento da racionalidade científica conforme as previsões dos teóricos da modernidade, embora tenha sofrido transformações. Ao contrário disso, as grandes tradições religiosas dão sinais de vitalidade e surgem no cenário atual novas formas de religiosidades, inclusive espiritualidades não religiosas[1]. O mundo contemporâneo é marcado pela presença da diversidade religiosa, pluralismos e alteridades que nem sempre são acolhidas em sua positividade, o que se constitui um dos grandes desafios para a reflexão das grandes tradições religiosas na contemporaneidade. Hans Küng afirma essa urgência: “ou a rivalidade entre as religiões, o choque de culturas, a guerra de nações, ou o diálogo das culturas e a paz entre as religiões, como condição para a paz entre as nações!” (KÜNG, 2005, p. 104).
No cenário mundial, segundo F. Teixeira e Dias Z. M (2008, p. 119-120), o Cristianismo constitui o bloco religioso mais numeroso com cerca de 2 bilhões de adeptos (33% da população mundial de 6,2 bilhões), seguidamente vem o Islã com certa de 1,3 bilhões de fiéis (22%), o hinduísmo com 900 milhões (15%) e o budismo com 360 milhões (6%), e os que se declaram não religiosos são 15% da população mundial. Segundo os autores, chama atenção a presença religiosa ocupada pelo Islã, a qual possui o crescimento mais significativo, tendo triplicado o número de fiés entre 1960 e 2013, onde maior parte de seus adeptos encontram-se na Ásia e África, sendo a Indonésia o país com maior presença de mulçumanos no mundo, cerca de 90% da população. Além disso, o Islã estende seu manto pela Europa “secularizada”, sendo a segunda maior religião na França, Alemanha e Inglaterra.
Diante dos dados citados, é clara a importância do diálogo inter-religioso no cenário atual, de modo que contribua à vivência da paz e da não violência. Nesse sentido, há muitas barreiras a serem vencidas, a primeira delas é o preconceito em relação ao Islã como tradição religiosa e o mundo mulçumano enquanto civilização política. Neste sentido, o desafio intelectual deste século reside no fim de uma visão parcial e negativa de que são vítimas as culturas do Oriente, diante de nossa arrogância intelectual. Se o Ocidente é Acidente, e não Destino, se é parte, e não todo, como pode outorgar a si mesmo a condição de Leitor ideal do que se passa nas areias do Tchad ou nas mesquitas da Caxemira? Este me parece o grande esforço: a guerra pelas partes. A guerra pela diferença. Ou partimos dessa atitude crítica, ou não participamos seriamente do debate. (Cf. LUCCHESI, 2002).
No Ocidente, há no ar uma islamofobia endêmica (Cf. ARMSTRONG, 2002b), sobretudo após o desastroso 11 de setembro de 2001, quando fundamentalistas muçulmanos destruíram o Word Trade Center em Nova York e, atualmente, os sucessivos ataques do grupo terrorista autodenominado Estado Islâmico em diversas partes do mundo, assim, falar hoje do mundo mulçumano, enquanto fenômeno sociológico, e do Islã, como tradição religiosa, constitui-se uma tarefa desafiadora. Além disso, o assunto faz fronteira com outras problemáticas não menos latentes e sérias como o conflito Israel-Palestina[2], o fundamentalismo religioso[3] e a violência[4], além de interesses econômicos e políticos que agem por detrás de toda discussão acerca do Oriente Médio.
O encontro de Frei Francisco com o sultão Malek-al-Kamil se deu durante a V Cruzada (1217-1221), na cidade de Damieta, Egito, em 1219. As Cruzadas foram expedições militares para a reconquista de Jerusalém e do Sepulcro de Cristo por parte da Igreja Católica e ocorreram entre os anos de 1095 e 1291, totalizando oito incursões às terras muçulmanas. A primeira foi convocada durante o Concílio de Clermont, pelo Papa Urbano II em 1095, com o objetivo de lutar contra o domínio mulçumano na Terra Santa, e durou até o ano de 1099, com a tomada de Jerusalém pelos Cruzados, depois de uma grande carnificina humana. Posteriormente, em 1187, Saladino toma a cidade de Jerusalém, e assim continua a disputa. As incursões posteriores se deram por motivos político-religiosos, além da expansão comercial, são elas: a segunda (1147-1148) proteger Jerusalém e reforçar os territórios; a terceira (1189-1192) para reconquistar Jerusalém; a quarta (1202-1204), reconquista da Terra Santa ligada à reforma da Igreja; na quinta (1217-1221) situa-se o encontro de Francisco com o sultão Malek-al-Kamil. Seguiram-se outras, a sexta (1228-1229); a sétima (1248-1250) e, por fim, a oitava (1270).[5] Tendo localizado o contexto histórico em que se deu o encontro, é importante conhecer algumas informações sobre Frei Francisco, o primeiro santo cristão a procurar entendimento com o mundo mulçumano (VAUCHEZ, 2013, p. 119).
Várias fontes históricas, sobretudo cronistas e hagiógrafos, tanto internas da Ordem Franciscana quanto por meio de testemunhos externos, narram o encontro de Francisco de Assis com o sultão Malek-al-Kamil, o qual é sem dúvida um dos mais atestados historicamente (Cf. VAUCHEZ, 2013, p. 125). Nas Fontes Franciscanas, em suas diversas bio-hagiografias, crônicas e testemunhos, é possível localizar esses relatos, e os Escritos de Francisco dão testemunho dele, no entanto, pela brevidade do estudo é possível apenas citar suas referências[6].
O ardor missionário de Francisco nasceu, em 1208, da escuta do Evangelho sobre o envio apostólico e, a partir de então, só naquele ano foram três missões junto aos primeiros companheiros em outras regiões.[7] Em 1211, faz a primeira tentativa de pregar o Evangelho em terras sírias, mas o navio, movido por ventos contrários, é empurrado às costas da Dalmácia e, via mar, regressa à Itália. Novamente entre 1213-1215 se dirige ao Marrocos para pregar aos sarracenos, mas a caminho da Espanha adoece e regressa à Itália[8]. Em 1217, no Capítulo da Porciúncula[9], a Ordem Franciscana é estruturada em províncias e acontece a primeira missão além-mar. Francisco partiria para França, mas ao chegar em Florença, seguindo o Conselho do Cardeal Hugolino de não se afastar da Ordem naquele momento, voltou para a Úmbria[10]. Em 1219, após o Capítulo Geral, iniciam-se as grandes missões ao exterior: Alemanha, França, Hungria, Espanha e Marrocos, e dessa vez Francisco parte de Ancona para o Oriente.
Foi durante a V Cruzada que Francisco, em meio a uma trégua, depois de um massacre sangrento, avança o acampamento dos cruzados cristãos e chega ao acampamento do Sultão do Egito. Atravessando as trincheiras da guerra, mesmo não tendo aprovação do Cardeal Pelágio, líder dos Cruzados, que não lhe dera salvo conduto (VAUCHEZ, 2013, p. 123), chega à outra margem e, com gesto pioneiro e profético, mostra-se aberto ao diálogo, à paz e à não violência. Francisco teria exclamado ao aproximar-se das linhas inimigas: “Sultão! Sultão”[11] sendo preso e levado ao sultão Malek-al-Kamil[12] que o recebeu com máxima honra e cordialidade. O sultão, mesmo diante do contexto das Cruzadas, propõe a paz política (SPOTO, 2003, p. 227-249) e Francisco vendo a desumanidade, o cenário de morte e violência da “guerra santa” propõe aos cristãos que não mais batalhem.[13] (BOFF, 2002, p. 50-53).
O que teria motivado Frei Francisco a empreender-se nessa missão? Podemos elencar pelo menos quatro motivações de acordo com a análise das fontes históricas.[14] A primeira delas, é o martírio. Frei Francisco possuía o ardente desejo de martírio, visto suas várias tentativas de ir aos sarracenos[15], nome dado aos muçulmanos na literatura medieval. No entanto, o desejo de martírio, comum à época, não era em vista de pregar contra os muçulmanos, mas sim de fazer-se um com Cristo e seu sacrifício de Cruz. Outra possível motivação era a de converter o sultão. Isso manifesta-se por meio da pregação da fé, por meio do Evangelho de Cristo, e da penitência, conforme a espiritualidade em vigor na época. A terceira motivação é o diálogo. Visto que Francisco viveu em um mundo marcado por guerras e uma religião marcada por fortes trações de heterodoxia e heresias, não se vê em sua conduta nenhum sinal de desrespeito ao outro e menos ainda sentimentos misantropos, o que se comprova por meio dos relatos de sua vida e em seus Escritos, pelo contrário, sua vida, pregação e Escritos são impregnados de respeito ao outro em todas as suas dimensões. Por fim, a quarta motivação desenha-se em torno da pregação da paz e da não violência, ações que marcam profundamente a missão evangelizadora de Frei Francisco, desde o abandono das lutas de guerra, o encontro com o leproso, com o Crucifixo de São Damião e como o lobo de Gubbio. Sua vida foi um hino de paz, conforme vestígio expresso na saudação de paz no Testamento: “O Senhor te dê a paz” (Test. 23).
Não obstante os esforços de Francisco, Damieta foi tomada pelos Cruzados em novembro de 1219 depois de violentos massacres. Francisco, diante das atrocidades vistas por seus olhos, entristecido pelo que viu, partiu para a Síria em peregrinação aos lugares Santos, antes de regressar à Itália. Sem dúvida a estadia de Frei Francisco na Terra Santa e sua boa recordação deixara nos mulçumanos boa impressão, o que leva à explicação de os Frades Menores, em 1333, serem os primeiros e, durante anos, os únicos religiosos latinos autorizados pelo sultão a voltar a Jerusalém e a receber, por pedido do rei de Nápolis, Roberto Anjou, a custódia dos lugares santos cristãos a qual conservam até hoje. (Cf. VAUCHEZ, 2013, p. 133).
A cena desse encontro encontrou espaço representativo na Arte, Literatura, Música e Cinema. Na Arte, foi imortalizada por Giotto di Bondone nos afrescos da Basílica de São Francisco em Assis, por volta de 1300. Na Literatura, por Dante Alighieri (1265-1321) em seus famosos versos da Divina Comédia: “E, pois, que pela sede de martírio, pregou Cristo e os que seguem à proterva, presença do Sultão em país sírio, porque de mais azeda já observa, a gente à fé, por não ficar em vão, ao fruto regressou da ítala erva.” (DANTE, Paraíso, XI, v. 100-105 apud VAUCHEZ, 2013, p. 125). Na Música, por Angelo Branduardi através da canção “Il sulltano di Babilonia e la prostituta”, no álbum Da Francesco a Francesco, em 2016. No cinema, pelo filme intitulado Sultan and the Saint, produzido pela Unity Productions Foundation, em 2016.
REFERÊNCIAS
ARMSTRONG, Karen. Campos de sangue: Religião e a História da Violência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ARMSTRONG, Karen. Maomé: uma biografia do profeta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b.
BASETI-SANI, G. Sarracenos. In: Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993.
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
CONTI, M. Estudos e pesquisas sobre o franciscanismo das origens. Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.
FONTES FRANCISCANAS. Santo André, SP: Editora o Mensageiro de Santo Antônio, 2014.
FREMANTLE, Anne. Idade da fé. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
FRUGONI, Chiara. Francisco de Assis, a vida de um homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
KÜNG, Hans. O islamismo: rupturas históricas – desafios hodiernos. In: Concilium, v.3, h.5, 2005.
LUCCHESI, Marco. Caminhos do Islã. São Paulo: Editora Record, 2002.
MCMICHAEL, Steven J. Francisco e o encontro com o sultão (1219). In: ROBSON, Michael J. P (Org). Francisco de Assis: História e Herança. Aparecida: Editora Santuário, 2015, p. 141-154.
MERCURI, Chiara. Francisco de Asís: la história negada. Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Edhasa, 2017.
OLIVEIRA, Ênio Marcos de. Francisco de Assis e Malek-al-Kamil: um encontro de paz. Sobre a abertura dialogal em Francisco de Assis e a influência do encontro com o sultão em alguns de seus escritos. Juiz de Fora: Dissertação de Mestrado, 2008.
SABATIER, Paul. Vida de Francisco de Assis. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco/Instituto Franciscano de Antropologia, 2016.
SALOMÃO, Wiliander Franca. Os Conflitos entre Palestinos e Israelenses: a trajetória dos fatos históricos e o Direito Internacional. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014.
SPOTO, D. Francisco de Assis: o santo relutante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
TEIXEIRA, Faustino; DIAS, Zwinglio Mota. Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso, a arte do possível. Aparecida: Editora Santuário, 2008.
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis, Entre História
e Memória. Tradução de José David Antunes e Noémia Lopes. Lisboa:
Instituto Piaget, 2013.
[1]Cf. Dossiê: Espiritualidades não-religiosas. Revista Horizonte Teológico. Puc Minas, v. 12, n. 35, jul./set. 2014.
[2] Sobre o assunto: SALOMÃO, Wiliander Franca. Os Conflitos entre Palestinos e Israelenses: a trajetória dos fatos históricos e o Direito Internacional. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014.
[3] Cf. ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 e BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz. Petrópolis: Vozes, 2009.
[4] Cf. ARMSTRONG, Karen. Campos de sangue: Religião e a História da Violência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[5] A Igreja de Roma viu nelas uma oportunidade de alargar para o Oriente os seus domínios, esfera de sua grande rival, a Igreja grega. Os reis e senhores feudais da Europa Ocidental viam perspectivas de adquirir novas terras e riquezas. Grandes senhores viam na guerra santa uma saída para os impulsos bélicos de seus turbulentos filhos mais moços. E o clero esperava encontrar escoadouro para os rixentos e desordeiros (FREMANTLE, 1996, p. 53 apud OLIVEIRA, 2008, p. 25).
[6] Os relatos podem ser encontrados nos textos: de Tomás de Celano: Vida Primeira – Capítulo 10 – 57, 1-12; Vida Segunda – Capítulo 4 – 30, 1-17; Legenda para uso do coro – 8, 1-5; de Juliano de Spira: Vida de São Francisco, VII – 36, 1-10; de São Boaventura: Legenda Maior IX – 7, 1-6 e 8, 1-18; Legenda Menor 3, 9; outros textos: Legenda Perusina – 37, 1-11; Compilação de Assis 77, 1-5; Actus Beati Francisci et sociorum eius – 27, 1-24; I Fioretti di San Francesco – 24; Crônica de Jordão de Jano – 10; nos testemunhos menores: Carta de Jacques de Vitry e Crônica de Ernoul.
[7] A primeira missão é à Marca de Ancona, a segunda à Poggiobustone e a terceira, dois a dois, pelas quatro direções do mundo.
[8] Cf. Vida Primeira, 54-55.
[9] Cf. CONTI, 2004, p. 28 apud OLIVEIRA, 2008, p. 48.
[10] Cf. Legenda Perusina, 82.
[11] Cf. Jordão de Jano, Crônica, 10.
[12] Para análises críticas deste encontro, conferir: VAUCHEZ, 2013, p. 117-133; MERCURI, 2017, p. 135-137; SABATIER, 2016, p. 217-227. MCMICHAEL, 2015, p. 141-154; e Damieta e Greccio em FRUGONI, 2011.
[13] Cf. Vida Segunda 30, Legenda Perusina, 37.
[14] Cf. OLIVEIRA, 2008, p. 50-70.
[15] Cf. BASETI-SANI, G. Sarracenos. In: Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993.