No final de 1181 ou início de 1182, “nasceu no mundo um sol”, como afirma Dante Alighieri em sua clássica Divina Comédia (Paraíso, Canto XI), cantando o nascimento de Francisco di Bernardone na pequena Assis. Embora as referências à família de Bernardone sejam poucas e limitadas, sabe-se que seu o pai do futuro Frei Francisco era Pedro Bernardone, um comerciante de tecidos. Quanto a sua mãe, Joana, alguns atribuem-lhe o nome de Pica, um cognome gentílico, relativo a Picardia, uma região da França em que florescia a indústria e o comércio de tecidos, a partir de meados do século XII, pesquisadores acham muito provável a origem francesa da mãe de Francisco. Segundo o primeiro biógrafo, Tomás de Celano, Francisco recebeu de sua mãe o nome de João, na ausência de seu pai que estava em viagem por motivo de negócios. Quando voltou, Pedro Bernardone exigiu que o recém-nascido recebesse o nome de Francisco, François – o “francês” ou mesmo “francesito”. Francisco era um nome desconhecido na Itália, o pai deve ter-lhe dado esse nome por influência da valorização de tudo que vinha de além do Alpes.
A França de Felipe Augusto exercia muita influência na cultura do Ocidente nos finais do século XII e início do século XIII, marcando a Úmbria, sobretudo, na literatura, nos ideais cavalheirescos e na poesia palaciana. Romances de aventura, canções de gesta e de amor, amor corpóreo exaltado pela ética cortês, através do qual se pode chegar ao amor transcendente, o amor a Deus. Francisco, podemos dizer, inicia sua conversão espiritual nas sendas da ética cortês onde gostava de cantar pelas ruas de Assis, canções de trovadores e de romances carolíngios e arturianos, exaltando personagens dos ciclos bretões, fatos esses bem atestados pelos companheiros e narrado pelas biografias. Desse modo, o apreço de Francisco pela língua e literatura francesas, devido ao contexto histórico, é muito mais do que simplesmente uma possível origem francesa de sua mãe, eram as influências de uma cultura que gestava mudanças.
A infância e juventude de Francisco di Bernardone[1], embora não abundante de dados, é cercada por mitos e lendas. A princípio sabemos que ele teve um irmão chamado Ângelo, como atestado por T. Celano. Sobre as relações familiares, pelas narrativas sabemos que tinha muitos conflitos com o pai, o qual se enfurecia com ele por causa de suas peripécias, sua mãe lhe protegia diante da fúria do pai, e o irmão dele fazia ironia. A Legenda dos Três Companheiros deixa transparecer, em suas linhas e entrelinhas, que os pais amavam Francisco com extrema ternura, embora demonstradas de formas diferentes. O caráter hagiográfico das primeiras biografias, pintam a juventude de Francisco com tons muitos escuros para depois exaltar a sua conversão com tons miraculosos e linguagem marcada por beleza e heroicidade, como convinha ao gênero literário da época. Nos Escritos de Francisco, sobre essa época, temos no Testamento uma palavra sua onde fala que “viveu em pecado” antes de “fazer penitência”, contrapondo “antes-depois”, com os clássicos adjetivos “amargo-doce”. A Vida Segunda e a Legenda dos Três Companheiros equilibram os contrastes apresentados pela Vida Primeira.
Quanto à educação, sabemos que o pequeno Francisco di Bernardone recebeu a instrução básica na escola canonical de São Jorge, tendo ali as primeiras lições de língua latina e os rudimentos de leitura e escrita. Privilégio para um jovem de nove anos de idade (1191), uma vez que a maioria das pessoas não sabia ler, escrever e calcular. Francisco por volta dos quatorze anos de idade (1196) chega à sua maioridade e é iniciado no negócio de seu pai, adquirindo experiência concreta na manipulação de dinheiro, atividade que demonstra habilidade e a qual influencia diretamente as relações sociais.
O comércio era uma das atividades mais importantes da cidade. Com os artesãos, os comerciantes colocaram em ‘crise’ o regime feudal criando verdadeira movimentação contra a dependência política e a favor de relações mais igualitárias. Nasceu desse movimento a burguesia que foi se consolidando até fazer ruir o regime feudal com a instalação da comuna, independência e autonomia da cidade. Logicamente, este movimento social não se dava sem guerras, as quais marcaram profundamente o jovem Francisco.
O jovem Francisco viveu em um tempo marcado por guerras, lutas entre senhores e reis, e buscou os ideais da Cavalaria, tão cantados pelos poetas e trovadores. Francisco nutriu a ambição de ser cavaleiro e ganhar um lugar de destaque em meio aos nobres, e estar ligado ao senhor e ao castelo. O cavaleiro fazia parte de uma elite especializada no combate a cavalo, mas também estava ligado a torneios e ao divertimento. Além disso, era tido como herói, uma pessoa de virtudes, cortês e galante. Francisco, com seu espírito jovial, festivo e musical queria fazer parte disto. O desejo de Francisco de se tornar um Cavaleiro, rapidamente ganhou oportunidades.
Em 1198, a Rocca Maggiore, símbolo da potência imperial, é destruída pela população sendo reforçada com suas pedras a muralha da cidade, Francisco contava com seus dezesseis anos de idade. Nos anos seguintes, 1199 e 1200 dá-se início, em Assis, à revolução comunal, guerra entre burgueses e nobres, menores que expulsam os maiores, os quais se refugiam em Perusa. Francisco, já se encontra entre as tropas da comuna, com seus dezoito anos de idade. Por volta de dois anos mais tarde, em 1202, o jovem assisense é preso na batalha de Collestrada, na disputa entre Assis e Perusa, e fica um ano nos cárceres frios de Perusa. Em 1203 é libertado, tendo seu pai pagado seu resgate, conforme o costume da época. Posteriormente em 1204, Francisco passa por um prolongado tempo de doença.
A paz ainda demoraria alguns anos para reinar em Assis, e as diferenças entre os maiores e os menores, estavam longe de serem resolvidas. Francisco após esse período de prisão passa por um longo tempo de enfermidade e começa a se “questionar” sobre a vida. Em meados de 1205, tenta novamente ir para Apúlia, como soldado, mas em Espoleto, por meio de um sonho é convidado a regressar a Assis e tem-se início o seu processo de conversão.
A conversão de Francisco[2], se dá em meio a este mundo onde convivam ideais ortodoxos e heréticos. Deus, no entanto, tinha reservado para Francisco outro caminho, o caminho da mística. Desses meandros, veio a tão sonhada renovação espiritual, fruto da intensa emanação da graça divina. No ano de 1205, começa a viragem existencial de Francisco, com o regresso de Espoleto, e se estende até meados de 1208, com a revelação do gênero de vida que devia seguir com seus futuros companheiros, os quais chamaria de Cavaleiros da Távola Redonda.[3]
O interior de Francisco, começou a ser habitado por uma voz até então “estranha”. As sucessivas batalhas em nome de senhores da terra, estava dando lugar à “batalha” de sua vida, com o Senhor dos Senhores. Francisco, ao invés dos campos de batalha agora buscava a solidão dos vales, a agitação dava lugar a meditação. Nestes vales, acontece o primeiro encontro místico de seu itinerário espiritual, o encontro com o leproso. Episódio que venceria para sempre qualquer segmentação entre vida espiritual e mundana, estabelecendo a comunhão universal entre todas as criaturas. No leproso, que até então lhe causava repugnação, viu a Cristo e beijando-lhe e abraçando-lhe, selou a paz. Com esta atitude, Francisco, como uma trombeta, anunciou aos sete ventos a dignidade de qualquer pessoa, em qualquer circunstância, porque Cristo, porque irmão! Francisco, no próximo, no maltrapilho, no doente e no descriminado pelo poder e pelo dinheiro, encontrou a Deus, o mesmo Deus que lhe falou, posteriormente, em São Damião, Igrejinha junto às muralhas de Assis.
Em São Damião, Francisco, de joelhos diante daquele grande crucifixo de madeira, ouviu dos lábios de Cristo, Deus lhe falando: “Francisco, vai e repara minha casa que ameaça ruir!”, Francisco se viu agitado violentamente diante de Cristo na Cruz, esse segundo encontro com o Cristo continuou transformando sua vida. Ele, então, não hesitou em cumprir o mandato daquelas palavras e começou a reformar aquele edifício em ruínas, e posteriormente, outros. Trabalhou, pediu esmolas, foi tido como louco, louco de Cristo, para Cristo.
Referências
VAUCHEZ, André. Francisco de Assis, Entre História e Memória. Tradução de José David Antunes e Noémia Lopes. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.
MENDOZA,
Celina A. Lértora. San Francisco de
Asís: Escritos Espirituales. Trad. Hno. José Antonio Guerra y Hno. Julio Herranz. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: El Hilo
de Ariadna, 2014.
TEIXEIRA, Celso
Márcio. Francisco de Assis: o homem e seu
mundo. MOREIRA, Alberto da Silva (Org.). São Francisco e as Fontes Franciscanas. Bragança Paulista: IFAN –
Editora Universitária São Francisco, 2007.
[1] Conferir: Mercador ou Cavaleiro? Juventude de um filho de rico, em: VAUCHEZ, 2013. p. 30-42; e também: Francisco de Assis, em: MENDOZA, 2014, p. 55-63.
[2] Conferir: A Viragem existencial (1205-1206), em: VAUCHEZ, 2013. p. 43-53.
[3] Conferir: Entre a vida eremítica e vagabundagem religiosa (1206-1208), em: VAUCHEZ, 2013. p. 54-58.
[…] A conversão de Francisco[2], se dá em meio a este mundo onde convivam ideais ortodoxos e heréticos. Deus, no entanto, tinha reservado para Francisco outro caminho, o caminho da mística. Desses meandros, veio a tão sonhada renovação espiritual, fruto da intensa emanação da graça divina. No ano de 1205, começa a viragem existencial de Francisco, com o regresso de Espoleto, e se estende até meados de 1208, com a revelação do gênero de vida que devia seguir com seus futuros companheiros, os quais chamaria de Cavaleiros da Távola Redonda.[3] […]
Resumo muito bom da história de São Francisco de Assis.