A Porciúncula é para a Espiritualidade Franciscana o lugar da fidelidade. Naquela pequenina Igreja nasceu o Franciscanismo. Naquela região, planície de Assis, outrora pantanosa, esteve aos olhos de Francisco a Igrejinha solitária denominada Santa Maria da Porciúncula. Hoje, aos olhos da humanidade, essa pequena Igreja está inserida na grande Basílica de Nossa Senhora dos Anjos, sendo para esta como que um coração. De fato, a Porciúncula é o coração pulsante do Franciscanismo, centro vital da experiência originária de Francisco de Assis e convite constante à fidelidade.
A Porciúncula é o lugar do nascimento do Franciscanismo[1] e lugar da morte de São Francisco. Nascimento e morte, neste lugar, não são realidades antagônicas pois a morte de Francisco é o cântico universal de uma vida vivida plenamente – desde as pequenas coisas – e uma vida assim não termina, se perpetua em cada um que compartilha desse mesmo desejo. A semente franciscana, plantada no solo da Porciúncula, floresceu em cada canto da terra.
Francisco, nosso irmão, chegou à Porciúncula por volta de 1206, depois de restaurar duas igrejas, a de São Damião e a de São Pedro, hoje desaparecida. Estava trilhando as sendas interiores da conversão, já havia deixado as roupas seculares e vestia o hábito de eremita.
Dali passou a outro lugar, chamado Porciúncula, onde havia uma antiga igreja em honra da bem-aventurada Virgem Mãe de Deus e que não era cuidada por ninguém. Vendo-a em tão mísero estado, e movendo-se de compaixão, pois era devotíssimo da Mãe de toda a bondade, decidiu morar ali mesmo e acabou de a restaurar no terceiro ano da sua conversão. O hábito que então vestia era semelhante ao dos eremitas, cingido com um cinto de couro; usava bordão para o caminho e sandálias nos pés. (1Cel, 21).
Nesta mesma Igrejinha, em 1208, na festa de São Matias, Francisco ouve o Evangelho do envio Apostólico[2] e vê com clareza o chamado do Senhor e parte como pregador itinerante. Deste Santuário Mariano nasce a vida e a missão propriamente franciscana. A Porciúncula, desse modo, torna-se, igualmente símbolo da devoção mariana de Francisco, sendo assim “centro e cabeça da Ordem onde, por primeiro, viu a encarnação viva de sua devoção para com Maria, quase personificada na própria igrejinha devido à sua materna presença nela”[3] e lugar carismático da vocação franciscana.
A Igrejinha da Porciúncula pertencia aos Monges Beneditinos do Monte Subásio que disponibilizaram a Francisco e seus companheiros o uso deste pequeno santuário mariano. Neste santuário, Francisco entendeu que sua missão era maior do que ser de “restaurador de Igrejas”. Pela graça da escuta atenta do Evangelho ele configurou a Ordem nascente à vivência do Evangelho como forma de vida o que depois ganhará letra na Regra. Ali nasceu a Ordem Franciscana[4], ali os frades se multiplicaram e ali se deu a vestição de Clara. Nesse lugar Francisco congregou os irmãos para celebrar os Capítulos Gerais e dali aconteceu a expansão da Ordem para além-fronteiras. Por isso, exortou Francisco:
Meus filhos, vede, não abandoneis nunca este lugar. Se dele vos expulsarem por uma porta, entrai logo por outra, porque este lugar é verdadeiramente santo e Deus tem nele a sua morada. Foi aqui, sendo nós ainda poucos, que o Altíssimo nos multiplicou; aqui iluminou Ele com a sua sabedoria os corações dos seus filhos pobrezinhos; aqui acendeu o fogo do seu amor em nossas vontades. Quem neste lugar orar com devoção alcançará o que pedir, e quem o profanar será punido com maior severidade. Por isso, meus filhos, considerai como digno de todo o vosso respeito este lugar onde Deus habita e nele ao Senhor erguei o coração com vozes de louvor e ação de graças (1Cel, 106).
Francisco, em uma de suas orações na Porciúncula, pediu a Deus pela alma dos pecadores e teve uma visão de Cristo e de Maria rodeados de anjos. Francisco pediu a Jesus o perdão dos pecados para todos que visitassem a Igrejinha da Porciúncula. Tendo Jesus concedido, Francisco parte em visita ao Papa Honório III para a concessão de sua permissão para celebrar o perdão de Assis.
No dia seguinte o pai seráfico correu apressadamente para alcançar tão grande privilégio para aquela pequenina igreja que tinha sido restaurada por ele há pouco tempo. O papa perguntou a São Francisco por quantos anos ele queria aquela indulgência. A resposta foi: “Que vossa santidade não me conceda anos, mas almas… quereria, se assim vos aprouver, que todo aquele que vier a esta igreja, confessado e contrito, seja absolvido de todos os seus pecados, da culpa e da pena, no céu e na terra, desde o dia do batismo até a hora em que entrar nesta igreja”. O papa explicou ao santo que não era costume da Cúria Romana conceder um privilégio como esse. Mas como São Francisco afirmava que estava ali não por iniciativa própria e sim como um enviado do Senhor, o papa atendeu o pedido do santo.[5]
Desde estão, esse santuário mariano tornou-se o lugar do Perdão de Assis por receber do Papa Honório III a conhecida Indulgência da Porciúncula em 02 de agosto de 1216. Esta indulgência celebra a graça do perdão, a cura das feridas do pecado pela graça de Deus e pela volta à vivência do Evangelho. Pode ser alcançada por meio da confissão, a participação na Missa e na Eucaristia, a recitação da Profissão de Fé e a oração pelo Papa e suas intenções.
Durante muitos anos a indulgência era alcançada somente com a visita à Porciúncula, porém com a Bula de 4 de julho de 1622, o Papa Gregório XV estendeu esta indulgência a todas as igrejas da Ordem Franciscana. Para facilitar o “Perdão de Assis” aos fiéis do mundo inteiro, o Papa Pio X deu a possibilidade de obtê-lo também nas igrejas ou oratórios. Por sua vez, Bento XV, em 16 de abril de 1921, com o um solene documento, estendeu esta indulgência a todos os dias do ano, mas, de modo solene, na Basílica de Santa Maria dos Anjos, em Assis. Assim se concretizou o desejo de São Francisco, de que o perdão chegasse ao coração de todos.
Desse
modo, a Porciúncula, para Francisco e seus companheiros foi o ponto de partida e
é o ponto de retorno, o lugar do qual brota a graça de Deus e o lugar donde
esta graça transborda para todos aqueles que dela necessitarem. Para o
Franciscanismo, a Porciúncula é o lugar da fidelidade onde Deus chama novamente
à opção evangélica ensinada por nosso irmão Francisco de Assis e vivida por
tantos homens e mulheres no mundo inteiro como carisma evangelizador. A
fidelidade inspiradora e criativa nascida da Porciúncula é verdadeiro
testemunho de esperança e paz em tempos de crise global.
[1] Algumas passagens das Fontes Franciscanas sobre a Porciúncula: Primeira Vida de São Francisco, 21-22; Segunda Vida de São Francisco, 18,5; 19,9; Legenda dos Três Companheiros 56, 2-3; Compilação de Assis 56, 27-28; Espelho da Perfeição (maior), 55, 21-22; 83, 3ss; Legenda Maior 2,8; 14, 1-5; Carta Encíclica de Frei Elias, 5; Legenda de Santa Clara, 8; Processo de Canonização, 12, 16, 17, 20.
[2] Cf. Mateus 10, 7-10; Marcos 6, 8-9 e Lucas 9, 1-6.
[3] Cf. DICIONÁRIO FRANCISCANO, 1983, p. 412.
[4] A Ordem Franciscana é composta por três famílias, a saber, a Ordem dos Frades Menores (OFM), a Ordem de Santa Clara (OSC) e a Ordem Franciscana Secular (OFS).
[5] Cf. DICIONÁRIO FRANCISCANO, 1983, p. 604.
Texto muito muito bom, explicativo, que oferta uma colaboração na vivêncoa espiritual.